As três exigências para a formação do psicanalista: teoria, análise pessoal e supervisão
Quero abordar aqui o chamado tripé psicanalítico, expressão que designa as três exigências tradicionais para a formação de um psicanalista: análise pessoal, formação teórica e supervisão clínica.
O que são as “escolas” de psicanálise
No Brasil, como em outros países, as chamadas escolas de formação psicanalítica são instituições privadas e autônomas que se dedicam a formar psicanalistas segundo tradições teóricas e clínicas específicas (freudiana, lacaniana, kleiniana, winnicottiana, entre outras).
Não são “escolas” no sentido de faculdades reconhecidas pelo MEC, mas sim sociedades, institutos ou associações organizadas segundo o modelo tradicional da transmissão psicanalítica. Ainda que não sejam instituições acadêmicas, usarei aqui o termo “escolas” para designá-las no sentido tradicional da transmissão psicanalítica.
O analista em formação, tendo escolhido uma dessas instituições, submete-se a um ritual de formação que costuma incluir:
Análise pessoal — o candidato passa por sua própria análise com um psicanalista considerado “experiente”, frequentemente indicado pela escola (o “analista didata”);
Estudos teóricos — leitura e estudo sistemático das obras de Freud e de outros autores relevantes;
Supervisão clínica — acompanhamento e supervisão de casos atendidos pelo formando.
A justificativa do modelo é que ninguém se torna psicanalista apenas por estudo teórico: é preciso a experiência analítica vivida. Essas instituições são independentes do Estado e do MEC, supostamente em linha com a orientação freudiana de que a formação analítica não deveria ser integralmente institucionalizada pelo ensino universitário tradicional.

A questão da análise pessoal
Imagine alguém que já tenha recebido boa formação teórica e precise se submeter, obrigatoriamente, a um analista didata indicado pela instituição escolhida. Trata-se, muitas vezes, de um profissional que o candidato não conhece e em quem pode não confiar. Mesmo com sólida preparação teórica e postura autodidata, esse candidato será submetido a um processo de associação livre e interpretação de sonhos com esse profissional — e, naturalmente, avaliará cada pergunta, cada observação, cada tentativa interpretativa. Não é raro que surjam resistências: o formando pode achar que certas linhas interpretativas não fazem sentido e sentir-se compelido a concordar por razões institucionais.
Uma análise que começa nessa base tem alta probabilidade de não produzir o resultado esperado — isto é, de não colocar o candidato em contato autêntico com aquilo que se supõe decisivo para sua formação. A obrigatoriedade da análise pessoal, aplicada de modo rígido, pode transformar o processo em mero cumprimento de formalidades burocráticas, sem respeito à singularidade de cada sujeito.
Alguém poderia alegar que maior flexibilidade na formação reduziria a qualidade. Eu penso o contrário: a flexibilidade pode fortalecer a individualidade e a criatividade de novos analistas. A psicanálise não é uma profissão regulamentada no mesmo sentido de outras áreas; por isso, não há critérios públicos e uniformes que determinem exatamente o que o analista em formação precisa fazer. Essa ausência deveria nos levar a buscar critérios mais racionais e transparentes — não a perpetuar rituais de submissão.
O tal tripé psicanalítico
A exigência do tripé foi estabelecida quase como convenção, mas não responde minimamente a questões práticas básicas, tais como:
- Quantas sessões, no mínimo, bastam?
- Qual a linha de abordagem do analista que conduzirá a análise?
- Qual é a garantia de que a formação realmente ajuda o formando?
- Qual o custo desse processo?
- Se o analisando abandona a terapia na quarta sessão, pode se intitular “analisado”?
- Dependerá de um certificado que o formador pode negar?
- O analisando pode escolher livremente seu analista, ou precisa seguir a lista da escola?
- E quanto à supervisão: quem garante que ela não criará limitações, intimidações ou constrangimentos que prejudicam a autonomia do formando?
- Por quanto tempo se estende a supervisão? Para sempre, como alguns insinuam?
- Quem dá “alta” e libera o formando para clinicar? Se a psicanálise rejeita, em muitos casos, as noções convencionais de “cura” e “alta”, que critérios são usados para aprovar um psicanalista?
- Sobre essa questão, Safouan relembra uma anedota instrutiva: por volta de 1922, Bernfeld, interessado em receber analisandos, perguntou a Freud sobre a regra recém-postulada pelo grupo de Berlim de que iniciantes deveriam empreender uma análise pessoal antes de exercer a psicanálise. Freud respondeu: “É um absurdo. Vá em frente. Você certamente vai ter dificuldades. Veremos, quando for o momento, o que se poderá fazer para tirá-lo do embaraço” (Safouan, 1985, p. 17).

As controvérsias ao longo do tempo
Desde a segunda metade do século XX, vozes dentro do próprio movimento psicanalítico vêm questionando o caráter autoritário e institucionalmente enviesado da análise didática. Luiz Meyer (2008), retomando críticas em “Subservient Analysis”, mostra que a prática didática institui uma divisão hierárquica entre os “bons” analistas e os “realmente bons”, concentrando poder nas mãos de poucos analistas-didatas e submetendo candidatos à lógica burocrática e à adesão ideológica da instituição. Segundo Meyer, essa estrutura “esvazia a relação analítica de sua essência, substituindo-a por regras formais, adaptativas e estratificadas” (MEYER, 2008, p. 81).
A crítica de Meyer é reforçada por Otto F. Kernberg. Citado por Meyer, Kernberg afirma:
“Acredito não haver dúvida sobre os efeitos tóxicos do atual sistema de análise didática e de suas consequências estultificantes e, a longo prazo, destrutivas para a educação psicanalítica.” (KERNBERG, 1996, p. 1031, apud MEYER, 2008, p. 82).
A contundência de Kernberg torna difícil sustentar a tese de que a análise didática, em sua forma atual, contribua efetivamente para a formação do analista. Se, como ele sugere, o modelo vigente produz efeitos “tóxicos” e “destrutivos” sobre a própria capacidade criativa das instituições psicanalíticas, o que está em jogo não é apenas a qualidade da formação, mas a vitalidade da psicanálise como campo de pensamento.
Em última instância, a análise didática deixa de ser um espaço de escuta e elaboração psíquica para converter-se em mecanismo de reprodução institucional e disciplinamento ideológico.
O jogo das hierarquias no modelo formativo
A estrutura de formação pode favorecer relações hierárquicas desiguais e potencialmente abusivas: o sujeito em formação corre o risco de ser reduzido a objeto, submetido a paternalismo ou pressões indevidas. A obrigatoriedade da análise pessoal pode tornar-se um instrumento de controle, exclusão e burocratização, comprometendo a ética do processo formativo e a singularidade histórica e social do formando.
Além disso, o excesso de foco na experiência individual pode obscurecer a dimensão social e política da psicanálise, desconsiderando contextos identitários e comunitários. A pressão sobre a análise pessoal pode provocar resistências tanto no formador quanto no formado, gerando processos que se desviam da ética do cuidado e do respeito à singularidade. Por isso é necessária maior reflexão ética na construção dos processos formativos.
Veja o que diz Fábio Herrmann sobre análise didática:
“Vale dizer que a compulsoriedade incidiu sobre aquilo que justamente menos pode ser controlado: a livre disposição de se fazer analisar, indispensável para a análise terapêutica e não tanto para uma análise de instrução ou de demonstração.”
“(…) a análise didática cada vez mais é considerada como uma análise terapêutica, somente mais ambiciosa que outra qualquer, e assim essencialmente dependente do desejo espontâneo dos analisandos.”
“A análise de minhas dificuldades psicológicas não fornece um parâmetro absolutamente universal e pode não se aplicar às de meus pacientes.”
“O problema que nos concerne apenas dá as caras quando cotejamos as duas espécies de análise. No começo, a análise terapêutica supunha um doente e a análise didática, um analisando aproximadamente normal. Quando esta simples distinção foi se apagando, duas ocorrências seguiram-se. A primeira foi tornar-se a análise didática o verdadeiro padrão para todas as análises.”
“Os autores demonstram a impossibilidade ética da análise didática; os didatas médios afirmam que, pessoalmente, discordam da obrigatoriedade e não se deixam influenciar por ela. É uma história de consciência culpada a da análise didática: quase se poderia crer que todos a executam de mau grado.”
“A forma mais virulenta dos argumentos contra a análise didática assenta-se numa espécie de demonstração de impossibilidade técnico-ética. É mais ou menos assim. A análise só é possível numa atmosfera em que a sugestão não exista ou esteja extremamente rarefeita… O caráter formativo potencializa a força de sugestão: o paciente-candidato tem todo o interesse em acreditar no que aparece em sua análise, caso contrário nunca chegará a considerar-se analista.”
“Como resultado, embora os analistas didatas queixem-se frequentemente da dificuldade de analisar candidatos, pela incidência de teorização e de contaminações do quadro em função do ensino, o certo é que costumam referir-se à análise padrão como se fora didática.”
Fábio Herrmann, Análise didática: uma história feita de críticas
Obrigatoriedade, resistência e exclusão
A obrigatoriedade da análise pessoal pode excluir aqueles que, por motivos pessoais, éticos ou econômicos, não desejam ou não podem se submeter ao processo. Há também questões éticas importantes relacionadas à proteção da vida privada e à confidencialidade do material da análise pessoal, com potenciais conflitos de interesse entre formadores e formandos.
A ênfase excessiva na análise pessoal pode deslocar o centro da formação para a vivência individual do formando, relegando o estudo teórico a segundo plano e comprometendo o equilíbrio ético e a pluralidade formativa. Como observa Luiz Meyer:
“Poderíamos também mencionar consequências problemáticas da existência de uma lista de didatas, com suas prerrogativas, dentro da instituição formadora.” (MEYER, 2008, p. 82).
O rigor na formação psicanalítica: liberdade versus imposição
A exigência rígida transforma o aprendizado em algo impositivo quando, na realidade, o que o formando precisa é liberdade para desenvolver sua capacidade analítica: escuta ativa, compreensão, interpretação do desejado do paciente e sensibilidade para seu contexto de vida. Forma-se, assim, um paradoxo: em nome da formação, restringe-se o crescimento crítico e criativo do futuro analista.
A crítica à hegemonia na formação e a questão do “inconsciente”
Tanto os analistas didatas quanto as escolas de formação têm interesse em manter sua hegemonia e autoridade — afinal, há uma dimensão de reserva institucional e profissional em jogo. Assim, o candidato é compelido a submeter-se a uma análise com alguém muitas vezes desconhecido e de confiança duvidosa. Quando o candidato já traz formação teórica sólida, a situação torna-se inevitavelmente enviesada: ambos conhecem as regras do jogo e antecipam interpretações possíveis.
Os defensores do modelo insistem que “a análise lida com o inconsciente; é preciso analisar-se para ter o próprio inconsciente desvendado”. Essa formulação parte de uma premissa que merece ser questionada: a crença na existência do inconsciente no sentido metapsicológico estrito freudiano — uma instância oculta, separada e inacessível à consciência.
Importa distinguir aqui dois pontos: a) a neurociência e a psicologia contemporânea reconhecem processos mentais inconscientes (processos automáticos, vieses, memória implícita etc.); b) porém, isso não equivale à comprovação da instância metapsicológica freudiana enquanto depósito separado de conteúdos reprimidos. A crítica que faço não rejeita a existência de processos psíquicos não conscientes — rejeita a transformação desse conceito em dogma institucional que legitima práticas hierárquicas.
Diversos teóricos, clássicos e contemporâneos, propuseram leituras alternativas do inconsciente: não como depósito oculto, mas como dimensão da experiência que se manifesta na linguagem, nos afetos e nas repetições da vida. A crença tradicional, porém, alimenta a figura quase mística do analista-intérprete que, pela associação livre, revelaria conteúdos secretos. Esse imaginário legitima a ideia de que a submissão pessoal autoriza o exercício profissional.
Supervisão: critérios e indeterminações
A supervisão, um dos pilares do tripé, levanta questões semelhantes. Por quanto tempo deve durar? Quais critérios objetivos definem sua conclusão? Frequentemente não há respostas claras: prazos e critérios são subjetivos, dependem do julgamento do formador ou da instituição, e podem prolongar indefinidamente o processo — além de representar custos elevados para o formando.
Desvendando o inconsciente: interpretação dos sonhos e traumas
A psicanálise tradicional propõe que sonhos, lapsos e atos falhos, emergindo de maneira aparentemente espontânea naquilo que Freud chamou de associação livre, contenham indícios de conteúdos “guardados” na mente.
Nessa dinâmica, o analista escuta e procura, a partir desses fragmentos, indícios do que estaria oculto, ou seja, conteúdos que o paciente não apenas teria esquecido, mas cuja própria existência ignora.
Veja > O inconsciente e os afetos
Segundo o conceito freudiano, este recanto oculto é o chamado inconsciente, uma instância psíquica onde repousam desejos reprimidos, memórias traumáticas, impulsos e experiências recalcadas. O indivíduo não tem consciência desses conteúdos e de tê-los reprimido. O papel do analista, então, seria interpretar os discursos e comportamentos do paciente para revelar esse material escondido e desconhecido.

O problema ético e metodológico aparece quando a interpretação assume a forma de afirmação de autoridade. O diálogo típico ilustra isso:
— “Você tem esse problema porque viveu um trauma.”
— “Não, nunca vivi nada disso. De onde veio essa ideia?”
— “Você tem, sim; só não sabe que tem. Está resistindo.”
Diante da insistência do analista, o paciente pode ceder apenas para satisfazer expectativas — especialmente o analisando em formação, ansioso por aprovação.
Quando a interpretação substitui a experiência do sujeito, o processo analítico corre o risco de transformar-se em exercício de convencimento, não de descoberta.
Em vez de libertar, a prática pode aprisionar o analisando em narrativas sugeridas pelo “mestre”.
Essa dinâmica reclama revisão se quisermos uma psicanálise mais ética e compatível com o pensamento crítico contemporâneo.
Veja também > O inconsciente e a psicanálise: da visão freudiana às perspectivas contemporâneas
A complexidade da formação: desafios e paradoxos
A formação psicanalítica carece de clareza e critérios objetivos. Requerer como condição a crença numa hipótese metapsicológica não comprovada, exigir confiança cega em um analista designado e admitir processos de formação indefinidos são contradições que fragilizam o próprio projeto formativo.
A tradicional máxima lacaniana — “o analista só se autoriza por si mesmo” —, frequentemente invocada como sinal de autonomia, funciona muitas vezes como álibi para a ausência de critérios públicos e transparentes. A formação psicanalítica permanece, portanto, envolta em ambiguidades: fé em hipóteses não demonstradas, confiança em sistemas pouco transparentes e submissão a processos que, em nome da liberdade, tendem a perpetuar dependência institucional.
Questionando a importância da análise pessoal: críticas e perspectivas modernas
O que importa hoje não é repetir o que Lacan disse pontualmente, mas reconhecer que o cenário contemporâneo apresenta vozes cada vez mais dispostas a questionar o dogma da indispensabilidade da análise pessoal. Autores como Luiz Cláudio Figueiredo, Luiz Meyer e Christian Dunker contribuíram para relativizar o tripé, abrindo caminho para uma psicanálise que dialogue com práticas baseadas em evidências (PBE) e com o pensamento científico contemporâneo.

Ignorar esse diálogo é um erro estratégico: a recusa em se submeter ao escrutínio científico reforça a imagem de uma disciplina que se recusa a ser questionada e ameaça sua credibilidade pública. Obras de divulgação e crítica recentes reacenderam o debate público sobre a psicanálise, exigindo humildade teórica e disposição para o diálogo — atitudes indispensáveis para preservar a relevância da disciplina.
Repensando a psicanálise: a necessidade de modernização e aproximação com a ciência
Estou realmente convencido de que a psicanálise precisa de uma abertura e de uma modernização, tanto em sua prática clínica quanto em seus fundamentos teóricos, e, sobretudo, na formação de novos profissionais.
É urgente que a psicanálise se aproxime daquilo que possa ser minimamente reconhecido como ciência. Para isso, é preciso superar a insistência em concentrar-se exclusivamente no “inconsciente” entendido no sentido estritamente freudiano, como uma instância psíquica cuja existência jamais foi comprovada do ponto de vista científico.
Não há qualquer evidência que sustente a ideia de uma “região” mental onde ficariam armazenados desejos reprimidos ou memórias traumáticas inacessíveis à consciência. Isso não significa, contudo, negar que experiências passadas, inclusive traumáticas, possam continuar influenciando o comportamento, o pensamento e as atitudes de uma pessoa. O ponto é que tal influência não pressupõe a existência de uma instância oculta; trata-se, antes, de conteúdos esquecidos ou não elaborados, que podem ser lembrados e trabalhados.
Nesse sentido, por meio da associação livre ou de uma anamnese conduzida com escuta atenta, o psicanalista experiente pode auxiliar o paciente a acessar tais lembranças, não por meio de uma revelação mística do “inconsciente”, mas pelo próprio processo de recordação e elaboração consciente do sujeito.
A modernização da psicanálise passa, portanto, por reconhecer seus limites conceituais e por dialogar com a ciência contemporânea, sem perder sua riqueza clínica, mas também sem se refugiar em conceitos cuja validade empírica nunca foi demonstrada.
Reflexões sobre formação: teoria versus análise pessoal
Ana Carolina Borges Leão Martins recorda uma crítica clássica já feita pelo próprio Freud. Em 1919, no texto Sobre o ensino da psicanálise nas universidades, Freud rejeitava a imposição da análise pessoal como pré-condição obrigatória para a formação. Ele afirmava claramente que “ninguém deve ser forçado a se analisar”, pois a análise só produz efeito real quando nasce do desejo e da necessidade psíquica, não de coerção institucional.
“(…) uma crítica já clássica feita por Freud, que em 1919 (em “Sobre o ensino da psicanálise nas universidades”) rejeitava a ideia de impor a análise pessoal como pré-condição. Freud afirmava que “ninguém deve ser forçado a se analisar”, pois a análise só tem efeito real quando é movida pelo desejo e pela necessidade psíquica — não por coerção institucional”
Ana Carolina Borges Leão Martins
Partindo daí, a formação deveria priorizar um conhecimento sólido e continuado.
Defendo que a formação teórica seja a base: estudo aprofundado, atualização contínua e disciplina intelectual, complementados pelo interesse autodidata, pela leitura crítica e por bons debates.
Não se trata de proibir a análise pessoal, mas de evitar sua instrumentalização como critério exclusivo de habilitação profissional. Permitir que o profissional exerça sua prática livremente, desde que busque formação teórica séria e ética, parece-me caminho mais coerente: se for competente, sua prática se sustentará; se não for, o próprio campo clínico e a demanda farão os ajustes necessários.
As nuances da prática e a liberdade profissional na saúde mental
Não gosto de usar a expressão “mercado” quando se fala em saúde mental, mas é inevitável reconhecer que, se alguém se apresenta como psicanalista, afirma ter formação em psicanálise e exerce legalmente esse direito, pois a lei o permite, não há razão para que precise se submeter obrigatoriamente ao processo tradicional e burocrático de formação conhecido como o “tripé”.
Se o faz dessa maneira, está apenas exercendo um direito legítimo. O que se espera, evidentemente, é que esse exercício seja pautado por ética, respeito e responsabilidade e que, como em qualquer profissão, os próprios pacientes possam julgá-lo pela qualidade do seu trabalho.
Alguns dirão: “ah, mas isso é perigoso, porque pode colocar em prática alguém sem a formação adequada, que venha a prejudicar a saúde mental de outras pessoas”. No entanto, enquanto isso, há quem ofereça reiki, constelação familiar, bioenergética, astrologia, homeopatia e tantas outras práticas, sem que se observe igual preocupação pública ou institucional com seus efeitos.
Por que, então, a psicanálise deveria ser tratada de modo distinto?
Se a lei assegura o direito ao exercício profissional, o psicanalista, ou o candidato à psicanálise, deve poder fazê-lo, desde que o faça com responsabilidade e seriedade.
É incoerente admitir uma série de práticas pseudocientíficas e, ao mesmo tempo, restringir o campo de uma disciplina que, embora não médica, possui uma base teórica e histórica consolidada.
É preciso, portanto, menos hipocrisia e mais racionalidade. Que trabalhem com respeito aqueles que desejam exercer suas profissões dentro dos limites éticos e legais e que se lhes permita demonstrar sua competência, se é que realmente a possuam.
Como bem observa Christian Dunker:
“(…) uma ideia fundamental para a gente pensar em formação, principalmente hoje, é de que ela começa por essa intuição de que cada um é responsável pela sua formação; cada um, quando escolhe um livro, quando escolhe um supervisor ou quando deixa de escolher um supervisor, ou quando deixa de frequentar uma escola, um conjunto de estudos, está lidando ali com a responsabilidade que cria para si mesmo ao se formar. Não é por outro motivo que Lacan revolucionou a psicanálise dizendo que o psicanalista não se autoriza senão de si mesmo…”
Conclusão: repensar para preservar
Em síntese, sustento que o tripé psicanalítico, embora historicamente relevante, tornou-se, em muitos casos, um modelo autorreferente — preocupado em preservar estruturas institucionais mais do que em formar analistas capazes de pensar com autonomia. Defender a modernização da formação não é abandonar a clínica, mas resgatar a psicanálise como prática de escuta, estudo e ética: menos rituais de submissão; mais responsabilidade intelectual e transparência.
É possível preservar o valor clínico da psicanálise sem transformá-la em ciência experimental, mas também sem afastá-la do diálogo com a ciência contemporânea. Proponho, portanto, uma formação que combine estudo teórico rigoroso, liberdade de escolha, supervisão ética e critérios claros e públicos — um modelo que favoreça autonomia, criatividade e responsabilidade profissional, garantindo que a psicanálise permaneça viva, plural e relevante.
Referências
KERNBERG, Otto F. Thirty Methods to Destroy the Creativity of Psychoanalytic Institutions. The International Journal of Psychoanalysis, London, v. 77, p. 1031–1043, 1996 – Obs.: O texto está em italiano, mas pode ser traduzido automaticamente pelo navegador (como o Google Chrome) com excelente precisão.
MEYER, Luiz. A análise didática deve ser mantida? Jornal de Psicanálise, São Paulo, v. 41, n. 75, p. 77–88, 2008.
HERRMANN, Fábio. Análise didática: uma história feita de críticas. Jornal de Psicanálise, São Paulo: Sociedade Brasileira de Psicanálise de São Paulo, v. 41, n. 75, p. 9–28, 2008.
MARTINS, Ana Carolina Borges Leão. A formação (em Psicologia) do psicanalista. São Paulo: Instituto de Psicologia da Universidade de São Paulo. Disponível em: https://www.fundamentalpsychopathology.org.br/wp-content/uploads/2020/02/Ana-Carolina-Borges-Le%C3%A3o-Martins_TRAB-PSICOP-FUND-CAROL.pdf. Acesso em: 11 out. 2025.
DUNKER, Christian. Formação psicanalítica. São Paulo: YouTube, 2021. 14 min. Disponível em: https://www.youtube.com/watch?v=q00iTBv14EM. Acesso em: 11 out. 2025.




