Os ilustres professores doutores Luiz Henrique de Lacerda Abrahão (CEFET/MG) e Patrícia Maria Kauark Leite (UFMG) assinam artigo na revista Cult sobre o livro “Que Bobagem! Pseudociências e outros absurdos que não merecem ser levados a sério (São Paulo: Contexto, 2023)” de autoria de Natalia Pasternak e Carlos Orsi.
O título do artigo, “Não se combate pseudociência com pseudofilosofia: algumas razões de por que o livro “Que Bobagem! não merece ser levado a sério”, dispensa informações adicionais sobre o alinhamento dos professores às ideias difundidas no livro.
Antes de entrar no assunto gostaria de narrar um episódio.
Eu era ainda adolescente quando fui jogado, por amigos, na piscina do colégio em que estudávamos, pouco antes do início do treino de voleibol, cerca de trinta minutos após o meu almoço, bem antes, portanto, das tradicionais duas horas recomendadas pela família. Implorei que não fizessem aquilo apresentando-lhes, desesperadamente, as minhas razões, mas foi inútil. Debaixo d’água meu inesquecível pensamento era: quanto tempo vai demorar para que eu morra? Quantos minutos? Ao voltar à tona, ainda surpreendentemente com energia, me dirigi à turma com muita indignação pela demonstração de tamanha insensibilidade e determinado a partir para a agressão, na expectativa de que ainda me restassem forças, antes do desenlace, para me vingar dos assassinos em potencial, que se diziam meus amigos. Felizmente fui contido antes de cometer os desatinos pretendidos.
Horas depois, a partir da feliz constatação de que não tinha morrido, fui pensando que talvez muitas das recomendações que eu havia até então recebido pudessem não ser verdadeiras. Talvez não me acontecesse nada se abrisse um guarda-chuva dentro de casa; talvez eu não precisasse manter grandes distâncias de sapos, pois provavelmente a urina deles não causasse cegueira e eles nem tivessem tão boa pontaria assim para acertarem meus olhos; talvez fosse indiferente, para a obtenção de uma boa nota, entrar na sala de aula para uma prova colocando, primeiramente na entrada, qualquer um dos meus pés; talvez não adiantasse muito apelar para São Roque diante da cara de poucos amigos de um rottweiler a me espreitar e talvez a mistura de cerveja Caracu com ovos crus batidos no liquidificador, com casca e tudo, não tivesse os poderes imunológicos que meu pai dizia que tinha.
Passei então a questionar tudo, e a experimentar uma sensação libertadora, me interessando, progressivamente, em conhecer as razões pelas quais as pessoas acreditam em eventos absolutamente improváveis.
Até que, como economista, cheguei ao mercado financeiro e comecei a me interessar por investigar os motivos do relativo sucesso de uma teoria chamada análise gráfica ou análise técnica, que não tinha, e continua não tendo, qualquer embasamento científico, mas que até hoje desperta interesse em investidores e estudantes, apesar de não produzir resultados consistentes.
Conheci então os trabalhos de John Allen Paulos, Sheldon Natenberg, Victor Niederhoffer, Laura Kenner, Nassim Taleb, e de outros que me ajudaram a consolidar a ideia de que a prática nada tinha de ciência e nem de utilidade para antecipar o comportamento do mercado, até porque ainda não se descobriu ferramenta milagrosa que possa ser usada para esse fim.
Por que existem tantos livros sobre isso, então?
Porque o tema atrai incautos, e isso permite que os autores ganhem muito mais dinheiro vendendo livros do que investindo em ações, seguindo a “técnica”.
Fato semelhante ocorre com autores de livros sobre pseudociências e pseudoterapias.
Mais tarde, sem relação com economia e mercados, mas em rota parecida, e já obcecado pelo assunto, cheguei a Thomas Gilovich, em How We Know What Isn’t So – The Fallibility of Human Reason in Everyday Life (o título e o subtítulo são excelentes, mas ficam deselegantes na tradução, por isso vou omiti-la) e, recentemente, a Natalia Pasternak e Carlos Orsi em Que Bobagem! Pseudociências e outros absurdos que não merecem ser levados a sério.
O que isso tudo tem a ver com minha decisão de escrever sobre o artigo de Luiz Abrahão e Patrícia Kauark? O que leva este inconsequente economista, sem nenhuma autoridade acadêmica, a arriscar-se dessa forma?
Dois motivos; o primeiro é o fascínio que tenho pelo assunto e que me levou a desenvolver pensamento crítico e forte atitude questionadora; o segundo, e mais importante, foi a gentileza de quem me enviou o artigo, o doutor Flavio Carsalade, arquiteto e professor de arquitetura na UFMG, amigo e parceiro de acalorados debates “filosóficos”, regados a vinho e uísque, na varanda de uma casa aconchegante em uma cidade litorânea do Rio de janeiro.
Finalmente, ao assunto.
Abstraindo-se os aspectos da motivação contestadora que é fruto do compreensível e admirável senso questionador de acadêmicos respeitáveis, como são os autores do artigo em questão, considero que ser apologista de metodologia científica rígida, principalmente para a desmistificação de pseudociências e pseudoterapias, não deveria ser característica desabonadora para que um autor não tenha sua obra reconhecida e merecedora de crédito.
Não me parece, também, que Natalia Pasternak e Carlos Orsi façam ciência com o livro e dentre suas pretensões com a obra certamente não está a de defini-la como um trabalho de filosofia da ciência, como parcialmente admitem os próprios autores do artigo:
Até se poderia dizer que eles não tinham tal pretensão filosófica.
Para enfatizar o contrário, porém, afirmam:
Por mais paradoxal que pareça, a análise da ciência não pertence à ciência, mas à filosofia da ciência. Um leitor mais ou menos desavisado pode ingenuamente acreditar que o livro pertence ao primeiro domínio e que gozaria, portanto, da autoridade científica. Mas trata-se de um texto, diga-se, de má filosofia, e não de ciência.
O ingênuo leitor aqui, apesar de desavisado para mais do que para menos, pede “vênia” aos autores do artigo, para acreditar, que o livro não pertença a um ou a outro “domínio”, por entender que falar, escrever ou fazer comentários sobre ciência, seus valores, princípios e métodos, bem como, expor a fragilidade da argumentação de propositores de práticas não científicas, não é, necessariamente, fazer ciência, ou analisar ciência, a despeito da autoridade e da capacidade que tem a bióloga para fazê-lo, se assim pretendesse, o que não é o seu objetivo com o livro.
Afirmam ainda que Pasternak e Orsi “insistem na tese de que a ciência possui um método fixo”, generalizando o que me parece ser simples interpretação com viés confirmativo, até porque antes de lacrarem que “o retrato traçado é eloquente, mas ficcional”, fazem uma descrição absolutamente irretocável do que os autores do livro pretendem demonstrar:
Pasternak e Orsi afirmam que “a ciência” se caracteriza por uma “atitude fundamental”: respeitar a “totalidade da evidência”, assumindo, ao mesmo tempo, uma “abertura à revisão crítica”. Isso significa que os cientistas não olhariam apenas para os dados “que se conformam a sua hipótese ou que adulam seus preconceitos”, mas, também, para “novos dados” que buscam invalidar “a conclusão obtida”. Essas novas informações deveriam ser “assimiladas de modo transparente e honesto, mesmo que o resultado seja a demolição de uma hipótese que já parecia bem confirmada”. Os conhecimentos científicos seriam merecedores de valor porque derivariam da lógica de investigação “mais correta e refinada”. Para “descrever, controlar e prever a realidade factual e o mundo natural” a ciência se utilizaria, como ferramentas lógicas, da “confiança nos sentidos, indução e dedução.”
Baseando-me em simples interpretação dos trechos reproduzidos, considero difícil concluir que estejam em desacordo com o que se possa chamar de boa prática científica.
Não creio, sinceramente, que os autores do artigo considerem que a atitude esperada de bons cientistas seja insistir na pesquisa em busca de uma comprovação para suas teses já exaustivamente refutadas. Claro que não é isso, mas ao afirmarem que
(…) cientistas trabalham em comunidade, compartilham premissas, objetivos, visões de mundo, e não abandonam suas opiniões assim que encontram situações imprevistas ou recalcitrantes,
além de parecerem reverenciar a teimosia inconsequente como virtude, tentam desqualificar a afirmação de Pasternak e Orsi com uma afirmação genérica e pouco clara. Até onde e por quanto tempo deve um cientista perseguir um resultado esperado, mas que não se confirma em seus estudos e pesquisas?
Os autores do livro não estão afirmando que cientistas devem desistir de suas teses ao surgimento dos primeiros reveses. É natural e desejável que prossigam nas suas investigações. O que o casal propõe é que o viés de confirmação não interfira nas conclusões. Me parece tão óbvia esta interpretação que até se poderia supor, o que não é sinceramente o meu caso, que há aí uma manipulação interpretativa proposital, usada como recurso para a validação das críticas à obra em questão.
Abrahão e Kauark deixam de transcrever um trecho que se encontra no livro logo em seguida ao que transcreveram, onde Pasternak e Orsi afirmam:
É graças a essa atitude que a ciência pode reivindicar o posto de melhor descrição possível da realidade factual. Isso não significa que ela nunca erra, ou que uma descrição alternativa qualquer, obtida por outros meios, estará sempre, necessariamente errada. Mas significa que, na maioria das vezes, havendo uma divergência entre descrições, aquela que foi produzida segundo a atitude científica é a que tem a maior chance de estar certa (ou menos errada). (…) A constatação de que há outros saberes ou outras epistemes importantes para a vida humana, além da ciência, é muito verdadeira (…)
Aqui, Pasternak e Orsi deixam claro o alinhamento dos seus objetivos à coerência, admitindo a validade de eventuais “outros saberes” e “outras epistemes importantes para a vida humana”, ressaltando apenas que, “na maioria das vezes, havendo uma divergência entre descrições, aquela que foi produzida segundo a atitude científica é a que tem a maior chance de estar certa (ou menos errada)”. Nada que se pareça com tentativa de “mitificar” a ciência.
Os autores do artigo afirmam, sem maiores destaques, que o objetivo de seu trabalho não é discutir se as práticas contra as quais se insurgem Pasternak e Orsi, são ciências ou não. Escrevem:
Não se trata aqui de discutir se as ideias atacadas no livro são ou não são ciência.
Ora, se não querem confrontar essas ideias, seus argumentos perdem força e desaparece a razão de suas críticas, bem como fica obscuro o objetivo do artigo, pois o que o casal de autores faz no Que Bobagem é exatamente atribuir pseudocientificidade às práticas que desmitificam.
Continuam:
Estão longe de problematizar se especialmente o ethos científico é ou não fundamentalmente crítico ou se existe algo que possa ser, em algum sentido rigoroso, denominado de “atitude científica”. Até se poderia dizer que eles não tinham tal pretensão filosófica (grifo meu). Contudo, quando consideram a experiência clínica como inadequada para produzir evidências, escrevem: “A Filosofia da Ciência já advertia, há décadas, que essas são bases frágeis e insuficientes”!
Problematizar sobre o caráter crítico do ethos da ciência está realmente longe de ser o foco dos autores do Que Bobagem, o que, paradoxalmente, parece ser também a opinião de Abrhaão e Kuark, revelada no trecho grifado por mim e reproduzido acima.
Referindo-se ao livro em: “A Filosofia da Ciência já advertia, há décadas, que essas são bases frágeis e insuficientes” (e aqui creio ter realmente faltado maiores detalhas de Pasternak e Orsi para embasar a afirmação), Abraão e Kauark fazem um questionamento sobre a que ciência os autores se referiam. Segundo os críticos não há uma filosofia da ciência e sim das ciências. Aqui parecem propor um deslocamento filosófico que poderia ser considerado mais adequado a um debate acadêmico longo e repleto de abstrações que, além de não se coadunar com o objetivo de Pasternak e Orsi, sequer servem para questionar-lhes o mérito.

A julgar por algumas passagens do artigo em questão, como: “consideram a experiência clínica como inadequada para produzir evidências”, a impressão que fica é a de que a preocupação maior da dupla de acadêmicos é com a colocação da psicanálise junto com charlatanismos e pseudoterapias, o que se reflete também em outro trecho: “troca alhos por bugalhos, ao misturar no mesmo saco áreas de saber sérias e consolidadas com charlatanismos e imposturas pseudocientíficas”. Isso poderia até fazer algum sentido se dirigissem o seu foco somente para a teoria psicanalítica. A partir daí se poderia desenvolver um debate interessante. Entretanto, como se referem a “áreas de saber sérias e consolidadas”, fazem supor que não estão se referindo unicamente à psicanálise.
Quais seriam, além da psicanálise, as outras “áreas de saber sérias e consolidadas”? Homeopatia? Acupuntura? A chamada medicina tradicional chinesa (MTC)?



Há que se perguntar, portanto, a Luiz Abrahão e Patrícia Kuark, se consideram astrologia, curas energéticas, antroposofia, homeopatia, curas naturais (como abordadas no livro) e constelação familiar, métodos terapêuticos válidos. Me parece que não discordam do casal em muitas das questões levantadas no livro, a julgar por este trecho de seu artigo, em que reconhecem-lhes valor ao observarem que
o confuso capítulo “Poder Quântico e Pensamento Positivo” não deixa de ter o mérito de tentar mostrar que a microfísica não autoriza maluquices místicas como cura quântica, prova científica da existência de deus e de campos de consciência, criação de realidades paralelas ou fenômenos de teletransporte (grifo meu).”
Valeria perguntar-lhes, também, se acreditam em dietas da moda, paranormalidade, discos voadores, deuses astronautas…



Se não consideram válidos os métodos terapêuticos, as crenças e as práticas aqui mencionadas, concordam, quase que integralmente, com o teor do livro, o que não justificaria considerar que o trabalho, no todo, não mereça ser levado a sério.
Salvo juízos hermeneuticamente (desculpem; não resisti) mais elaborados, creio que Pasternak e Orsi, no capítulo “Psicanálise e Psicomodismos”, no trecho:
Quando a psicoterapia traz benefício, isso aparentemente deriva mais da pessoa do terapeuta do que da técnica usada ou da teoria que embasa a técnica,
não descartam a possibilidade de que pseudoterapias em geral, onde incluem a psicanálise, possam ser úteis para alguns pacientes, apenas sugerem que não há elementos que possam atribuir-lhe o rótulo de ciência. Reconhecem, entretanto, que embora podendo contribuir para uma melhora do paciente, o bom resultado estaria provavelmente associado à identificação do analisado com o profissional, e não exatamente a uma abordagem psicanalítica.
Veja também > Psicanálise é pseudociência? A polêmica que divide opiniões há um século
Pasternak e Orsi não estão sozinhos na crítica a uma possível pseudocientificidade da psicanálise. Estão acompanhados por muitos autores, entre os quais destaco: Mikkel Borch-Jacobsen, Morris Eagle, Jean Cottraux, Adolf Grünbaum, Jacques Van Rillaer, Frederick Crews e, para citar um brasileiro, Ronaldo Pilati. Somente na obra O Livro Negro da Psicanálise, que ganhou no Brasil edição resumida pela psicanalista Simone Perelson, encontram-se depoimentos de 23 autores criticando a teoria freudiana, sendo que no original, organizado por Catherine Meyer, há 40 depoimentos na mesma linha, destacando-se os prestados por alguns dos nomes acima mencionados.
Com relação a Frederick Crews, recomendo uma interessante entrevista concedida por ele a Clarisse Ferreira, do canal Psicolosofia, respondendo a uma ridícula e infundada acusação de um famoso psicanalista brasileiro, professor da USP e queridinho de celebridades brasileiras, referente a críticas que Crews fazia à teoria freudiana.

Gostaria de deixar claro que não entendo a psicanálise como uma abordagem inútil, como todas as outras práticas criticadas por Pasternak e Orsi. Ao contrário, pelo que tenho estudado, considero que há muito de verdadeiro, fascinante, instigante e convidativo a reflexões na teoria psicanalítica, embora haja também, desde o seu nascedouro, práticas discutíveis, o que não invalida a possibilidade de obtenção de bons resultados por meio de tratamentos bem conduzidos por profissionais hábeis e qualificados.
Difícil, entretanto, discordar da argumentação de Pasternak e Orsi quanto à questão da cientificidade da abordagem, por tudo o que apresentam para demonstrar seus pontos de vista que, além de compartilhados por vários autores, também encontram eco em muitos psicanalistas, entre os quais Arnaldo Chuster (membro da Sociedade Psicanalítica do Rio de Janeiro e do Newport Institute of Psychoanalysis), que, segundo o Nexo Jornal, chega a classificar a psicanálise mais como uma arte do que uma ciência, e Elias Mallet da Rocha Barros (membro da Sociedade Brasileira de Psicanálise de São Paulo e da Sociedade Britânica de Psicanálise e editor para a América Latina do International Journal of Psychoanalysis), que, também segundo o Nexo Jornal, disse: “Tenho dificuldade de entender a indignação com a afirmação de que a psicanálise não é uma ciência como a física, química e eventualmente a biologia – não é mesmo e não há porque os analistas se sentirem diminuídos por isto”.

Exatamente como fazem todos os que se dedicam a criticar o Que Bobagem, Abrahão e Kauark, antes de acusarem os autores de demonstrarem uma “imagem simplificada, idealizada e pouco crítica da ciência” curiosamente também os elogiam, afirmando que
No Brasil, essa “tecnodesinformação”, que muitos preferem denominar de “fakenews” (notícias falsas), foi uma estratégia utilizada pelo governo de extrema direita de Jair Bolsonaro com fins políticos e trouxe à tona uma onda de negacionismo científico, irracionalismo e fanatismo (grifo meu). Assim, em meio a campanhas midiáticas de contrainformação científica, muitos brasileiros acreditaram que o consumo de vitamina D, C ou água com limão poderia evitar o contágio do vírus; que ivermectina, eficaz no combate a pulgas e carrapatos, e cloroquina ou hidroxicloroquina, utilizados para tratamento de malária, atuariam como profilaxia, tratamento precoce ou tardio da doença, mesmo com a negativa das próprias farmacêuticas fabricantes dos medicamentos; e ainda que o mecanismo de ação desses antiparasitários fosse semelhante ao de antivirais. Como resposta a essa onda negacionista, especialistas em Saúde e influenciadores digitais abraçaram iniciativas de comunicação científica que visavam oferecer informações claras e confiáveis ao grande público. (grifos meus).
Em um trecho, já no final do artigo, são ainda mais enfáticos ao concordarem com os autores do livro, reconhecendo os potenciais danos que “maluquices inventadas” podem causar:
Não é difícil concordar que “maluquices inventadas” podem causar danos, ou que pessoas “morrem, adoecem” por acreditarem em opiniões sem embasamento. Podemos até aceitar que “para entender, descrever e interferir no funcionamento do mundo natural, a ciência ainda é nossa melhor ferramenta”.
É estranho que quem se manifeste nesse sentido em favor da ciência, rechaçando invenções e negacionismo científico, possa, no mesmo trabalho, se insurgir contra os autores de uma obra, cujo único objetivo é desmistificar as falsas crenças e as pseudociências.

Em outra citação contrária ao que consideram cientificismo dos autores do livro, afirmam:
filosoficamente aprendemos que “o método” ou a “atitude crítica” são ilusões epistemológicas.
Certamente na escola em que aprenderam não estudaram Harriet Hall, Steven Novella, Martin Gardner, Edzard Ernst, o trio Moritz Schlick, Rudolf Carnap e Otto Neurath, do Círculo de Viena, Mario Bunge entre outros, que se dedicaram a valorizar pensamento crítico e método, por meio do ceticismo científico, da lógica, do racionalismo científico e do empirismo.
Ao citarem Paul Feyerabend, reclamam que Pasternak e Orsi deixaram de mencioná-lo, desconsiderando que esta argumentação concede ao casal e a seus admiradores, o direito de retribuir-lhes reclamação semelhante por não terem feito referência a muitos dos nomes aqui citados, em cujos trabalhos está refletido boa parte do pensamento dos autores do Que Bobagem!
Para as afirmações também baseadas em Paul Feyerabend de que “não há uma atitude científica” e “se é que existe algo que possa ser, em algum sentido rigoroso, denominado de “atitude científica”, há contestações de respeitáveis pesquisadores, especialmente a do filósofo Lee McIntyre em The Scientific Attitude: Defending Science from Denial, Fraud, and Pseudoscience, obra descrita em resumo pela editora universitária MIT Press, referindo-se ao autor, da seguinte forma:
He describes the transformation of medicine from a practice based largely on hunches into a science based on evidence; considers scientific fraud; examines the positions of ideology-driven denialists, pseudoscientists, and “skeptics” who reject scientific findings; and argues that social science, no less than natural science, should embrace the scientific attitude.
(Ele descreve a transformação da medicina de uma prática baseada em grande parte em palpites para uma ciência baseada em evidências; considera fraude científica; examina as posições de negacionistas, pseudocientistas e “céticos” movidos por ideologias que rejeitam descobertas científicas; e argumenta que as ciências sociais, não menos que as ciências naturais, deveriam abraçar a atitude científica).
A propósito, além de McIntyre, também Karl Popper, Imre Lakatos, John Worrall, Larry Laudan, entre outros, criticaram o que alguns chamaram de “anarquismo epistemológico” ou “anarquismo ingênuo” de Feyerabend, cujos posicionamentos parecem mais alinhados ao que se poderia chamar de voluntarismo narcisista ou culto ao ineditismo, do que a um pensamento filosófico claro, coerente e consistentemente alternativo. Seus críticos coincidem em avaliações e conclusões que questionam sua atitude anárquica e negacionista em relação ao método científico e consideram que sua abordagem, se levada a sério, poderia abrir espaço para uma ampla variedade de posicionamentos sem critérios claros ou para uma relativização excessiva da prática científica.
Ainda sobre Feyerabend escrevem:
Paul Feyerabend (…) defendeu que, em larga medida, o “respeito e o prestígio especial” dos cientistas decorreria mais de uma imposição colonialista da visão de mundo ocidental (grifo meu) do que da aplicação de um método de pesquisa.
Com o intuito de reforçar a ideia de negação da existência de uma “atitude científica”, valem-se da argumentação de Feyerabend, recorrendo a uma impertinente associação entre ciência e ideologia, evidenciada pela referência destacada a uma suposta conspiração colonialista do ocidente em favor do respeito e do prestígio especial dos cientistas.
Deixam, assim, escapar uma provável intenção de estabelecer, de forma absolutamente imprópria, uma relação de causa e efeito, quando o que claramente se percebe é uma tosca e inútil manifestação de puro viés ideológico de Feyerabend, que muito diz sobre a sua alcunha de anarquista ingênuo.

Abrahão e Kauark afirmam que Pasternak e Orsi
(…) não dedicam uma linha sequer para discutir as posições de Feyerabend e, sobre Kuhn, apenas reduzem o conceito polissêmico de paradigma a “algo válido dentro de comunidades científicas particulares”. Eles até tentam passar a impressão de algum letramento epistemológico, especialmente quando, ao discutir a cientificidade da psicanálise freudiana, aludem ao filósofo Karl Popper e a outros popperianos ilustres, como Mario Bunge ”). (grifo meu)
A epistemologia é uma área interdisciplinar e não seria nada surpreendente se uma doutora e pós-doutora em microbiologia pela USP desejasse enveredar, superficialmente, por esses caminhos, ainda que sofisticados aprofundamentos acadêmicos possam ser deixados para os filósofos. Entretanto, definitivamente não é esse objetivo de Natalia Pasternak com o livro, e as simples referências a Karl Popper e Mario Bunge, prestam-se muito mais para fundamentar a sua narrativa do que para evidenciar qualquer intenção de demonstrar “letramento epistemológico”.
Veja um pouco mais da minha experiência com pseudoterapias > O Nutricionista
Prosseguem Abrahão e Kauark imediatamente em seguida:
“(…) apenas revisitam lugares-comuns da filosofia da ciência, digamos, pré-1960. Isto é, seguem uma cartilha que oscila entre as posições positivista (ou verificacionista) e popperiana (ou falsificacionista), segundo as quais a ‘aplicação do método científico’ consiste no ‘apelo à evidência científica relevante‘.
Interessante notar aqui como o viés de confirmação pode, paradoxalmente, levar a posicionamentos estranhamente rígidos, aqueles que criticam, exatamente, a rigidez do suposto cientificismo dos autores do livro.
Luiz Abrahão e Patrícia Kauark, em busca de fundamentação para suas afirmações, parecem sugerir, pelo uso da expressão “lugares-comuns”, que o que foi escrito antes de 1960 sobre filosofia da ciência, oscilando entre positivismo e popperianismo, está ultrapassado. Talvez porque suas visões sobre o tema estejam alinhadas às ideias dos únicos filósofos que citam no artigo para validar a crítica que fazem. Thomas Kuhn publicou o seu A Estrutura das Revoluções Científicas (The Structure of Scientific Revolutions), em 1962 e Paul Feyerabend o seu Contra o Método: Esboço de uma Teoria Anarquista do Conhecimento (Against Method: Outline of an Anarchistic Theory of Knowledge) em 1975.
Os críticos de Feyerabend são contemporâneos dele e tiveram o auge de suas contribuições filosóficas bem depois de 1960, exceto Karl Popper que publicou seus primeiros trabalhos na década de 1940, o que descarta a ideia de que pensamento que valoriza o método e a evidência científica relevante, seja anterior a 1960 e esteja ultrapassado, e que alusões nesse sentido são revisitas a lugares-comuns..
Sobre Thomas Kuhn alegam os críticos que este mereceu apenas ligeira citação associada ao seu conceito de paradigma, criado em The Essential Tension em 1977:
“Paradigma”: “O conjunto de compromissos compartilhados de uma comunidade científica”; “o que os membros de uma comunidade científica, e só eles, compartilham”.
Alegam que os autores do livro “apenas reduzem o conceito polissêmico de paradigma”. Bem, talvez Pasternak e Orsi, considerem também polissêmico o conceito a ponto de não dar-lhe muito destaque, já que sua intenção não é estabelecer um debate filosófico, pois, referindo-se aos “paradigmas” de Kuhn e também à definição de “episteme”, de Michel Foucaut em Archaeology of Knowledge, afirmam:
Em comum, os conceitos têm, além do fato de referirem-se à ciência, a característica de não serem lá muito precisos e darem margem a confusão.
Abrahão e Kauark parecem querer passar a ideia de que ciência somente tem relevância se tratada como um punhado de postulados que, por sua natureza dinâmica, não devem ser considerados como a fiel representação da realidade e, portanto, não devem ser “mitificados”.
Ainda que o dinamismo da ciência espreite, sob constante ameaça, grande parte das teorias e descobertas hoje validadas, a simples possibilidade de que novas conclusões e abordagens possam ser reveladas em pesquisas e experimentos futuros, não justifica o descrédito no método científico e, muito menos, a aceitação de pseudociências na suposição de que um dia, quem sabe, possa ser-lhes atribuída validação científica.
Acho muito interessante este trecho do Que Bobagem!:
Lá se vão décadas, Isaac Asimov publicava o que talvez seja um dos melhores ensaios de divulgação científica já escritos, The Relativity of Wrong (…) em que explicava que, embora as ideias da ciência sobre a realidade sempre estejam, de algum modo, erradas — afinal, a ciência progride a partir da crítica e da revisão das próprias descobertas — elas estão menos erradas hoje do que estavam há cem, ou duzentos anos.
Os resilientes e bravos leitores que chegaram até aqui podem estar se perguntando: ora se o artigo é dirigido à comunidade acadêmica da área de filosofia, de onde vem a autoridade para as afirmações aqui apresentadas em defesa de obra de Pasternak e Orsi? Afinal é sabido que percepções filosóficas desse nível não estão dando sopa por aí para serem captadas por economistas ou por curiosos, simples mortais se comparados com os deuses do saber epistemológico. Que ousadia desse cara!
Bem, certo de que o livro Que Bobagem não foi escrito para ser lido, interpretado e comentado somente por filósofos, vou continuar me arriscando e exercendo meu direito de opinar, mas sempre apresentando evidências que possam fundamentar minhas afirmações, na tentativa de, com essa atitude, compensar, ainda que parcialmente, minha falta de “letramento epistemológico”.
Abrahão e Kauark, no intuito de explorar o tema em um nível mais acadêmico, ressaltam que análise da ciência não é ciência e sim filosofia da ciência, entretanto, quem leu o livro sabe que as referências à ciência ali contidas, que são, obviamente, muitas, estão sempre associadas às justificativas apresentadas para definir pseudociências, psicoterapias e crendices. Portanto não me parece haver algo de filosófico no trabalho da bióloga e do jornalista, mas, sim, uma criteriosa e bem fundamentada reunião de constatações e de dados confiáveis e muito bem organizados, que rasgam as capas supostamente científicas de falsos conceitos.
Não satisfeitos em classificar a obra como de filosofia da ciência, passam a definir seus autores como praticantes do que chamam de pseudofilosofia da ciência.
(…) pretende ser suspostamente um livro de divulgação científica enquanto é na realidade uma peça ingênua e superficial de ficção filosófica.
Aqui me permito, ainda que carecendo de formação acadêmica em filosofia e em epistemologia, afirmar que o livro não trata de “divulgação científica”, e não merece ser rotulado como “uma peça ingênua e superficial de ficção filosófica”. A leitura atenta da obra não deixa dúvidas de que os autores não divulgam ciência como objetivo central, mas fazem, sim, divulgação de pseudociência, e com uma narrativa muito bem fundamentada em postulados científicos, e isso nada tem a ver com “ficção filosófica”. As acusações de Abrahão e Kauark estão mais para uma imaginativa tentativa de influenciar interpretações com retórica academicista sofisticada, do que para uma crítica bem fundamentada que inspire reflexões.
A quem deseje lançar sobre os dois a acusação de mitificação da ciência exige-se a apresentação de fatos, provas ou dados que os descredenciem ou que evidenciem equívocos incontornáveis em suas narrativas.
A obra de Natalia Pasternak e Carlos Orsi, longe de ser original em conteúdo, é desafiadora e corajosa, por ir de encontro, sem rodeios, a ideias fortemente arraigadas à mentalidade popular. É um trabalho marcante que vem irritando a quem se sentiu ofendido ao ver “sua pseudociência de estimação”, como gostam de afirmar os autores, ser criticada com firmeza e consistência. Um dos grandes méritos do casal é utilizar linguagem clara e acessível, exceto no capítulo da cura quântica, o qual, concordando com os seus críticos, considero confuso.
Demonstram, com a obra, a fragilidade dos fundamentos que sustentam práticas, crenças e terapias que, embora populares e apoiadas injustificavelmente pela também injustificável PNPIC (Política Nacional de Práticas Integrativas e Complementares), não têm respaldo científico e quando “funcionam” o fazem por sugestão ou efeito placebo.
É um trabalho útil e muito esclarecedor para aqueles dispostos a refletir e a rever conceitos ou para os que não tinham ideia de que estavam sendo submetidos a terapias ineficazes. É, por outro lado, um verdadeiro deleite para os obstinados perseguidores da lógica, da coerência, da razão e, por conseguinte, da ciência.
Concluo com uma menção à frase de Artemus Ward que Thomas Gilovich usou como epígrafe na introdução do seu How We Know What Isn’T So:
It ain’t so much the things we don’t know that get us into trouble. It’s the things we know that just ain’t so.
(Não são tanto as coisas que não sabemos que nos causam problemas, mas sim as coisas que sabemos, mas que, simplesmente, não são como sabemos).