Há limites para o exercício da liberdade nas relações amorosas?
Mais fundamental que o amor é a liberdade!
A liberdade é o alimento do amor!
O amor é pássaro que não vive em gaiola! Basta engaiolá-lo para que ele morra!
Ter ciúme é reconhecer a liberdade do amor!
O desejo de liberdade é mais forte que a paixão!
Pássaro eu não amaria quem me cortasse as asas!
Barco eu não amaria quem me amarrasse no cais!
Rubem Alves
Afinal; o que se entende por liberdade, quando o assunto é amor?
Ao tratar de temas relacionados à liberdade nos relacionamentos amorosos, alguns se valem das definições consolidadas em clichês, dos mais variados, que resumem a ideia de que sem liberdade o amor não sobrevive.
É claro que não há que se questionar a necessidade de se sentir livre para amar. Ninguém admitiria a vida sem liberdade, inclusive no amor.
Quem desfruta de liberdade pode pensar e agir como quiser, desde que o faça nos limites da lei.
Qualquer restrição a esse direito, descaracteriza a liberdade, já que esta não existe em formato parcial.
Ou será que existe?
Há limites para o exercício da liberdade?
Em caso afirmativo haveria que se admitir que há pessoas mais ou menos livres, e que existiria o conceito de meia liberdade, ou de liberdade quase total, mas, na verdade, ou se é livre ou não se é livre.
Um pássaro limitado a um viveiro do tamanho de um container, se sentiria mais livre do que um outro que habitasse uma pequena gaiola. Já uma terceira ave que vivesse no Maracanã, hipoteticamente fechado e adaptado, com todo o seu espaço, para abrigá-la, seria mais livre que as duas primeiras, mas as três aves não seriam verdadeiramente livres.
Em uma analogia do exemplo das aves com os relacionamentos amorosos, observa-se que há casais que exercem suas liberdades individuais em maior ou menor intensidade, e, portanto, assim como os pássaros, não desfrutam de liberdade.
Admitindo-se que os únicos limites ao exercício pleno da liberdade sejam os legais e éticos, a pessoa verdadeiramente livre pode fazer quase tudo o que quiser.
E é aí que reside, a meu ver, a despreocupação dos que preferem as repetições simplistas do entendimento de que amor não sobrevive sem liberdade, sem o necessário aprofundamento na avaliação conceitual do termo e de sua ligação com o amor.
Para Rubem Alves, por exemplo, “a liberdade é o alimento do amor”. Será?
Amor e liberdade: dois diferentes estilos de casal
Para um certo tipo de casal, pode haver um sentimento recíproco de querer estar sempre juntos. Dormir, viajar, visitar parentes e amigos, se divertir e até trabalhar, sempre juntos. Compartilham gostos e projetos que se alinham aos seus desejos de estarem em constante proximidade e sintonia, renunciando a outros que, embora mais promissores, os separariam. Priorizam, em muitas vezes, o bem-estar da outra parte, sem que isso lhes proporcione qualquer frustração. Vivem assim sem sentimentos de privação de liberdade e de individualidade. Claro que aqui me refiro aos que vivem felizes, pois a simples adoção desse padrão de convivência não gera garantia de felicidade.
Para outro tipo de casal esta forma de viver soa como um disparate; um tremendo absurdo, pois consideram que a convivência constante acabaria com o amor, arruinaria suas privacidades, aniquilaria seus direitos à liberdade, suas individualidades, suas existências como ser único, e suas aspirações de crescimento e autodesenvolvimento, portanto, precisam do seu próprio espaço. Não suportam estar sempre juntos, preferem, às vezes, não morar juntos, não admitem viajar sempre juntos, e isso pode ocorrer até por questões de natureza profissional, pois não trabalham juntos e sentem forte necessidade de se divertir com amigos, eventualmente, sem a presença do parceiro ou da parceira.
Com o intuito de evitar excessivas divagações, vou ignorar a variedade de estilos de casais que possam mesclar, em quase que infinitas combinações, as diversas características dos dois tipos hipotéticos de casal.
Até aqui, você consegue se identificar com algum dos dois tipos de casal? Creio que a maioria se posicionaria em algum lugar entre os dois, mas, e se considerássemos que não há meio termo e que não há escolha? Em qual dos dois tipos você acha que o seu relacionamento melhor se encaixaria? Em qual dos dois tipos você preferiria estar?
Há maneiras certas e erradas de tratar de liberdade no amor?
Não considero errada nenhuma das duas perspectivas de amar, e nem identifico ausência de liberdade na forma de viver do primeiro tipo de casal, uma vez que a cumplicidade e o compartilhamento de suas vidas, convívio e anseios, são decorrentes de decisões consensuais.
No caso do segundo tipo de casal, não acho que a necessidade de mais privacidade e individualidade e a aceitação, com naturalidade, do não compartilhamento de sonhos e projetos, deva afetar, negativamente, a relação e o amor que possam sentir um pelo outro.
Se as partes, nos dois tipos, se mantiverem fiéis aos princípios que adotaram, tudo tende a funcionar bem, entretanto, às vezes, o que se observa é que anseios de liberdade podem começar a incomodar partes do primeiro tipo de casal e julgamentos de excessos de liberdade podem afetar os casais do segundo tipo.
Vou concentrar o foco no segundo tipo, até porque todas as questões abordadas a seguir se aplicariam, também, a um casal do primeiro tipo, em que ambos, ou uma das partes, começassem a desejar mais liberdade.
Por exemplo: os dois aceitam que a outra parte saia para um chopinho, em happy hour, com amigos; mas quanto tempo de permanência no evento se tolerará? E a frequência desses eventos? Se uma das partes quiser uma frequência grande, a outra tem que aceitar? E se não aceitar pode limitar o número de eventos ou o tempo de permanência? E se houver alguma imposição de limites, pode-se dizer que há, ainda assim, liberdade?
E quanto a com quem se pode estar no evento? Podem ser amigos e amigas? Se puder, o parceiro ou parceira pode sair somente com uma amiga ou um amigo? E vale balada? Vale jantar? Vale jantar com vinho?
Espero que tenhamos concordado que liberdade existe ou não existe, não cabendo, portanto, a imposição de limites.
O rigor conceitual da palavra e a noção de que o amor se alimenta da liberdade exigiria que não se impusesse qualquer limite à outra parte, e é claro que muitos vivem felizes exercendo essas liberdades.
Mas isso é o que se observa com maior frequência? Ou será que, na maioria das vezes, há um que não quer dar tanta liberdade ao outro? Ou será que se aceita dar liberdade, ainda que isso produza alguma insegurança ou ciúme, somente por receio de se demonstrar insegurança ou para não dar ao outro o direito ao cerceamento da própria liberdade? É admissível se pensar que muitos gostam de ser livres, mas nem tanto de conceder liberdade?
Veja > As pessoas se apaixonam sem querer?
Vamos prosseguir nas simulações das situações que envolvem interpretações sobre o que seja liberdade nos relacionamentos.
E quanto a uma viagem de trabalho, ou a separações eventuais motivadas pela natureza das atividades do casal? Quanto tempo de afastamento pode-se admitir como razoável? Dois dias? Uma semana? Duas semanas? Um mês? Dois meses? Pode um casal que se ame muito aceitar afastamentos longos e frequentes?
Minha resposta é sim, claro que pode e todos conhecemos casais que vivem felizes assim. Mas será que são maioria os tipos de casal em que ambos aceitam, sempre, com a mesma serenidade, afastamentos longos?
E quanto ao ciúme? cabe ter ciúme nas situações acima descritas ou nas condições de exercício de liberdade aqui discutidas? É o ciúme compatível com a noção de amor e liberdade? Quem vive um amor com total liberdade sente ciúme? Sentir ou não sentir ciúme é apenas uma questão de insegurança ou autoconfiança, ou será que existem outros sentimentos, não relacionados à confiança na outra parte, que podem produzir ciúmes? Pode-se considerar que, na verdade, quase todos sentem, em maior ou menor grau, algum ciúme?
A verdade é que o ciúme é, para alguns, um sentimento que produz vergonha. Há os que não o sentem e há os que sentem, mas preferem esconder porque o consideram feio, condenável e incompatível com os padrões atuais de exibição de segurança, autoconfiança e autoestima. É claro que estou aqui a me referir a certos tipos de ciúme não diagnosticados como patológicos por profissionais da psicologia, da psicanálise ou da psiquiatria.
Rubem Alves, dizia que o ciúme é um tipo de decepção que se sente quando se percebe que a pessoa amada pode se sentir feliz sem a nossa presença. Acho interessante essa definição.
É possível que, para alguns, a percepção de não ser o bastante para fazer o parceiro ou a parceira feliz, em todos os momentos, pode levar a irracionais e momentâneas fantasias, que acabam desembocando em frustrações e em sentimento de abandono, que são definidos como ciúme, mas que não se relacionam com falta de segurança ou de confiança.
Veja > Amor e paixão: sentimentos mutuamente excludentes
A questão é que a noção de liberdade sugere que não deva haver ciúmes e inseguranças, caso contrário desfazem-se os princípios que caracterizam os casais do segundo tipo.
E quanto à possibilidade de envolvimento com outra pessoa, nos chamados relacionamentos abertos, ainda que não seja este o principal interesse das partes, pode? A considerar-se, novamente, o rigor conceitual da palavra, pode, pois se não pudesse, não haveria a verdadeira liberdade.
Embora alguns casais coloquem essa permissão em seus manuais e contratos de exercício mútuo da liberdade, outros, ainda que socialmente considerados muito liberais, param por aí e não aceitam, pois não conseguem dissociar este comportamento daquilo que se entende como traição.
A Liberdade é realmente o alimento do amor?
Mas, e aí? E a tal da liberdade que alimenta o amor Rubem? Onde fica? Infelizmente ele não pode mais responder.
O que se observa é que quando se avança na tentativa de definir o que é liberdade no amor, aparece a necessidade de se avaliar situações mais intrigantes, extremas e potencialmente conflituosas, que acabam por expor a relatividade do conceito do termo nos relacionamentos.
Não é possível afirmar que um casal se ame em liberdade, sem saber até onde vão os limites que adotaram e decidiram aceitar, respeitar e praticar no relacionamento. Isto significa que, ainda que não registrado em cartório, existe uma espécie de contrato, abstrato e simbólico, onde ficam implícitas e delimitadas ações e liberdades permitidas. E isso, creio eu, se aplica até àqueles que adotam a liberdade total, o que pressupõe, inclusive, a possibilidade de terem outros parceiros e parceiras, embora seja quase certo que, mesmo nesses casos, ocorram conflitos e imposição de certos limites.
As respostas a estas indagações vão variar sempre em relação: ao maior ou menor grau de envolvimento de cada um no relacionamento, aos condicionamentos adquiridos ao longo da vida, às reações automáticas que decorrem destes condicionamentos, ao tipo de educação recebida, ao ambiente em que viveram, à capacidade de compreensão dos fatos e das consequências de seus pensamentos e atitudes, e à habilidade de reconhecer erros e mudar pensamentos e ações. Tudo sempre estará conectado a sentimentos que, de forma mais ou menos intensa, todos experimentamos, tais como, amor, paixão, apego, insegurança, desconfiança, autoconfiança, autocontrole, medo da perda, desprezo, desprendimento e ciúme.
Talvez a solução para não engaiolar o pássaro amor, ou não manter o barco amarrado ao cais, como sentenciou Rubem Alves, possa estar em encontrar um substituto para a palavra liberdade nessas interações com o amor. Quem sabe uma cesta de substitutos: bom senso, discernimento, respeito, tolerância, paciência, compreensão, aceitação das diferenças, confiança mútua, maturidade, definição de prioridade e persistência em se buscar entendimento e harmonia.
Definitivamente, liberdade, isoladamente, não é a palavra que resume as soluções para questões tão complexas.
É fundamental viver a total liberdade nos relacionamentos amorosos?
E por não acreditar em meias liberdades, não posso crer que a liberdade, no sentido que considero preciso da palavra, seja o alimento do amor, e, portanto, creio, por este viés lógico, que somente pode sentir-se inteiramente livre quem não amar.
Costuma-se confundir sentimentos de independência, autoconfiança e autoestima com o sentimento de liberdade.
Ser independente, autoconfiante e capaz de lidar bem com as próprias angústias e carências, emocionais e afetivas, é importante sintoma de autocontrole e sabedoria, mas não significa, necessariamente, ser livre, no sentido aqui abordado.
Portanto, amar é muito bom, é gostoso, é lindo e é preciso. Viver um amor em total liberdade, nem tanto.
E a questão da liberdade sem amor?
E para os que se chocarem com essa afirmação, nunca é demais ressaltar a intrigante questão do exercício da liberdade sem a existência do amor, sem que se tenha alguém para amar e por quem se sentir amado, quando isso é realmente um forte desejo. Nesse caso, ainda que nem sempre e não necessariamente, a liberdade pode ser absolutamente inútil, chata, entediante e até desesperadora.
Amor e paixão: sentimentos mutuamente excludentes?
Sobre amor e paixão, quero fazer uma observação. Nunca me pareceram muito razoáveis as separações conceituais entre essas palavras.
Em quase todos os dicionários amor aparece como um dos diversos sinônimos e definições da palavra paixão. Creio que se estabeleceram confusões que são fundamentadas em questões muito mais relacionadas a tempo de duração, frequência e intensidade de atos impulsivos nos relacionamentos afetivos, do que em diferenças semânticas.
Parece que quando alguém se diz apaixonado está querendo dizer que não está ainda amando e que quando diz que está amando, parece estar querendo dizer que não está mais apaixonado, ou seja, já se teriam passado os momentos de ardência e de loucuras supostamente cabíveis somente entre os muito apaixonados.
Parece, também, que amor e paixão são sentimentos mutuamente excludentes. E há até definições absurdas de tempo para caracterizar um e outro; diz-se, com frequência, que a paixão parece ter validade de dois anos, daí para frente, se o relacionamento continua, é amor. E quando casais ultrapassam, heroicamente, esta marca, mantendo atitudes românticas e muito afetuosas, são, surpreendentemente, referenciados como “ainda apaixonados”, a despeito de tanto tempo juntos.
E, por falar em paixão, aqui vai algo que gostaria de ter dito ao Rubem Alves: o que seria do irracional, encantador e emocionante prazer de se apaixonar se o sentimento de liberdade fosse, como ele disse, mais forte que a paixão? Claro que, se assim fosse, as pessoas não se entregariam de corpo e alma às paixões, já que, em algum momento, esta poderia afetar suas supostas liberdades e tudo o que é emocionante no processo da paixão ficaria para segundo plano.
Definitivamente, não dá para pensar, prioritariamente, em liberdade quando se está loucamente apaixonado, ainda que pela própria carcereira.
Que vivam as paixões
Discussões e reivindicações sobre liberdade podem e devem fazer parte da vida dos casais, mas quando começam a prevalecer em relação a outros temas, na ausência de situações extremas ou de abusos que as justifiquem, é provável que a paixão possa estar se acabando ou já ter se acabado, pois enquanto ela existe é soberana, implacável e invencível, e, para o bem ou para o mal, feliz ou infelizmente, não há sentimento, de qualquer natureza, muito menos o de liberdade, que seja capaz de subjugá-la.
Portanto, que vivam as loucas ou serenas, inexplicáveis ou compreensíveis, certinhas ou irresponsáveis (nesse caso convém avaliar riscos e consequências), muito curtas ou muito longas a ponto de se credenciarem a ser chamadas de amor, mas todas, não menos que todas, sempre respeitosas, arrebatadoras e aprisionadoras paixões.
E que se dane, neste caso, e somente neste caso, o sentimento de liberdade.
Veja também > Explorando a Essência do Romantismo: Emoção, Liberdade e Paixão