O ciúme não se manifesta apenas por medo de traição; ciúme é também medo da perda, medo do abandono, medo de não desfrutar mais da admiração de alguém. É a percepção de que podemos deixar de atrair intelectualmente a pessoa amada. É aquela certa frustração de pensar que aquele ser com quem imaginamos um dia dividir nossa vida compartilhando sonhos, desejos e projetos, possa ter outros sonhos, desejos e projetos nos quais podemos não estar incluídos.
O ciúme é um sentimento que não enobrece socialmente quem o sente, e por isso os ciumentos admitem com certa relutância essa condição, geralmente apresentando justificativas pretensamente atenuantes para seus comportamentos e reações. Ter ciúmes pode não ser, necessariamente, prova de amor — embora iremos ver adiante que há pesquisas indicando que muitos assim o consideram – assim como não ter ciúmes não significa não amar.
Muitos desprezam — ou preferem demonstrar que desprezam — sentimentos desse tipo por achar que denotam insegurança, baixa autoestima, fragilidade emocional, egoísmo e dependência afetiva.
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Sim, em muitos casos, pode-se dizer que sim; uma ou mais dessas condições podem estar presentes, mas não devemos nos deixar seduzir pela tentação de interpretar, de maneira simplista e generalizada, fenômenos emocionais complexos como o ciúme, somente porque os discursos interpretativos estão aí, corriqueiramente disponíveis nas redes sociais e nas conversas de boteco entre as “amigas” e os “amigos” ditos “descolados” ou “cool”, que acham que mostrar indiferença a sentimentos que sugerem fragilidade e insegurança é uma demonstração de força e personalidade.
Portanto a resposta à pergunta: o ciúme é sempre doentio, deve ser: não
É equivocada, perigosa e geradora de estereótipos a atitude de estabelecer padrões banalizados de diagnóstico de comportamentos humanos de alta complexidade e prevalência, baseando-se em tendências que muitas vezes se espalham por ignorância ou modismo.
Não é correta a interpretação de que as razões que levam uma pessoa a demonstrar ciúmes estejam sempre associadas a causas de natureza patológica.
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O ciúme é um dos mais antigos, comuns e instintivos sentimentos humanos ocorrendo, em diversas situações e circunstâncias, entre adultos e crianças e contendo fortes componentes culturais, evolutivos, filogenéticos ou relacionados a prévias experiências traumáticas.
É claro que os ciumentos podem apresentar seus sentimentos de maneira patológica, como uma paranoia, especialmente nos casos de ciúme delirante. Nesses casos, terapias com antipsicóticos e/ou psicoterapia podem ser recomendadas por médicos e profissionais de saúde mental.
Entretanto, ainda que ocorra sem se traduzir em violência física ou verbal, ou em acintosa opressão, ou seja, não apresentando traços patológicos, o ciúme deve, é claro, ser sempre discutido, questionado, avaliado e, em última instância, também devidamente tratado, principalmente se estiver causando incômodo e limitando a vida tanto da pessoa amada, objeto do sentimento, como a da própria pessoa ciumenta.
Tudo, entretanto, deve ser feito de maneira respeitosa em relação a quem esteja vivendo o ciúme, já que o sentimento representa algo inerente à condição humana, e não há modernismos interpretativos, decorrentes de evolução social que impeçam a sua manifestação, ainda que contida ou escondida.
O ciúme pode se apresentar em diversas formas: abertamente demonstrado, disfarçado, escondido, contido por vergonha ou engolido à força para evitar conflitos, e ocorre com muito mais frequência do que se pode deduzir.
O psicólogo baiano Elídio Almeida, especialista em terapia de Casal e Família, coordenou uma breve, mas muito interessante pesquisa*, com 200 pessoas, cujos resultados demonstraram que cerca de 60% dos participantes se declararam ciumentos, 38% não tolerariam que seu parceiro ou sua parceira sequer desejasse ou fantasiasse, outros envolvimentos e 55% consideram que contatos físicos com outra pessoa são desencadeadores de ciúmes.
Alguns ciumentos sentem vergonha de assim se definir, pois acreditam que dessa forma agregarão uma imagem de fraqueza e insegurança ao seu caráter e à sua personalidade, o que pode contribuir para dificultar seus relacionamentos sociais, afetivos e até profissionais.
Curiosamente, muitos dos que não se reconhecem ciumentos admitem que não se sentem confortáveis em certas situações — reais ou imaginárias, trazidas à tona pelos amigos em descontraídos bate papos — em que o parceiro ou a parceira, supostamente, mantivesse contatos físicos, sociais e emocionais com outra pessoa que seja amiga ou colega, de trabalho, de faculdade, de academia etc.
Sobre isso, observou-se, nessa mesma pesquisa, que 40% dos entrevistados se definiram como não ciumentos, mas quando confrontados com situações semelhantes às que me referi acima, acabaram por admitir que se sentiriam incomodados e com ciúmes. Dos 40% que se disseram não ciumentos, apenas cerca de 10% mantiveram uma postura de indiferença diante das suposições de contato do parceiro ou parceira com outras pessoas. Esse número, quando somado ao que representa os que se manifestaram declaradamente ciumentos, revela que 90% dos participantes se consideram ciumentos.
Não se pode deixar de considerar, como já destacado, que, na avaliação de pesquisas desse tipo, declarar-se ciumento ou ciumenta é algo visto por muitos como atitude de insegurança, que pode reduzir o valor de quem assim se declara, produzindo eventuais dificuldades para a construção de novos relacionamentos ou até para a manutenção de atuais, além de declarações falsas de ciumentos, se dizendo não ciumentos.
Uma outra pesquisa** realizada pelo Instituto Locomotiva em parceria com a QuestionPro, com 1.500 participantes, revelou que a maioria, 59%, acredita que ciúme é sinal de amor e o interpretam como um sentimento capaz de melhorar a relação. Entre as mulheres o percentual das que pensam dessa forma foi de 47%. Perguntados se eram ciumentos ou ciumentas, 57% dos homens e 67% das mulheres assumiram que sim.
Considerando que a maioria apresenta, de certa forma, algum ciúme e que muitos preferem esconder esse sentimento, é, no mínimo, precipitado atribuir patologia ou inadequação a qualquer caso, exceto, claro, àqueles em haja opressão, e violência, física ou verbal, como os que caracterizam os relacionamentos abusivos.
Estou aqui a tentar passar a ideia de que sem violência e opressão qualquer demonstração de ciúme é válida? Não. Definitivamente, não. Estou insinuando que o ciúme pode ser justificável? Sim. Em muitos casos, claro que sim, o ciúme pode ter suas razões e justificativas, ainda que estas possam não resistir a um bom diálogo, a boas terapias e a outros processos que produzam, nos ciumentos, reflexões, alinhadas à razão e à coerência, que os façam mudar o comportamento, para o seu bem e para o bem dos seus parceiros e parceiras.
Há também que se considerar as diversa nuances do ciúme e suas variadas formas de apresentação e manifestação.
Há diferentes tipos de episódios e eventos que o desencadeiam e que estão diretamente ligados a condicionamentos educacionais e socioculturais, e também às diferentes respostas e reações, tanto de quem manifesta o ciúme como daqueles a quem o ciúme é dirigido.
Cria-se na mente de quem julga o comportamento dos ciumentos uma certa hierarquização dos eventos que geram ciúme, de maneira que, para alguns, determinadas atitudes são muito banais e outras muito relevantes a ponto de justificarem certa insegurança, e, com isso, cada um produz seu próprio arcabouço de juízos sobre a aceitabilidade do ciúme, mas tudo muito em função de seus próprios valores e condicionamentos.
Isso, é claro, dificulta o estabelecimento de um código que possa ser universalmente aceito para analisar o sentimento e, portanto, esgotam-se todas as possibilidades de se criar padrões relevantes de julgamento, o que não poderia ser diferente quando estão em jogo aspectos psíquicos de natureza tão complexa. O ciúme, na maioria das vezes, é fruto de pura fantasia do ciumento.
Os ciumentos devem se esforçar para aprender a controlar seus impulsos e pensamentos e buscar solução para suas questões de insegurança no diálogo e na reflexão.
Devem procurar ajuda profissional se, ainda que compreensível, os seus ciúmes estejam, com frequência, lhes causando desconforto emocional e prejudicando os seus relacionamentos.
O que está em questão aqui é a tendência equivocada de generalização “modernosa” de se atribuir incoerência, inadequação ou patologia a toda e qualquer demonstração de ciúme.
Portanto, fiquemos atentos às condições que permeiam o ciúme patológico nos relacionamentos abusivos, mas sejamos respeitosos e empáticos com os ciumentos do bem, que, afinal, constituem a maioria daqueles que decidem compartilhar suas vidas embarcando em um relacionamento afetivo.
*https://elidioalmeida.com.br/blog/pesquisa-sobre-ciumes-realizada-pelo-psicologo-elidio-almeida-2/ – acessado em 18/7/2024.
**https://www.metropoles.com/colunas/pouca-vergonha/59-dos-homens-acreditam-que-ciumes-e-sinal-de-amor-revela-pesquisa – – acessado em 18/7/2024.
**https://www.cnnbrasil.com.br/lifestyle/ciume-e-sinal-de-amor-mais-da-metade-dos-homens-brasileiros-acreditam-que-sim/